por elaine tavares - jornalista
Rio Grande é um importante município gaúcho que fica bem no extremo sul, abrigando, segundo o último censo, 196.337 habitantes. Toda a vida da cidade gira em torno da água, seja do mar ou das lagunas. É um lugar líquido, possuindo a praia mais extensa do mundo, a do Cassino, com 240 quilômetros de costa, além da Lagoa dos Patos (maior laguna do Brasil) e a Lagoa Mirim. Seu porto é um dos maiores e mais importantes do país, escoando produção e trazendo riquezas. Todo essa fluidez indicaria um município voltado aos esportes náuticos, mas não. A cidade tem na sua história o singular fato de contar com o mais antigo time de futebol em atividade no país.
É o Sport Club Rio Grande, nascido legalmente em julho de 1900, 23 dias antes do Ponte Preta, outro que ainda se mantém em atividade até hoje. Por conta desse destino ininterrupto, a data de sua fundação foi escolhida pela Confederação Brasileira de Futebol para celebrar o dia do futebol, instituído nacionalmente. Suas cores verde, vermelho e amarelo (as mesmas da bandeira do estado) nunca deixaram de tremular na cidade e, desde os primeiros chutes, seus jogadores e torcedores dedicaram-se a construir um clube que, muito mais do que vencer campeonatos, pudesse promover o esporte e a saúde. Isso vai ser muito significativo ao longo de toda a vida do clube e não é sem razão que, justamente, o Sport Club Rio Grande seja hoje o responsável pelo projeto que proporcionou um Centro de Referência de Esporte Educacional na cidade, com repercussões regionais. Porque esse clube de futebol que já era realidade no final do século XIX (bem antes de ser fundado oficialmente), com a rapaziada jogando na rua, sempre soube que a única finalidade possível para um jogo como esse era a brincadeira, a alegria e a promoção da saúde.
Rio Grande é um espaço geográfico que está eivado de história e de valentia. Antes da chegada dos invasores europeus era lugar de coleta do povos Carijó e também da gente Minuano. Não havia necessidade de agricultura porque a pesca era farta e tudo o que se precisava a natureza oferecia sem esforço. Mas, com a disputa de território entre espanhóis e portugueses, os portugueses decidiram criar ali, naquele lugar estratégico do caminho para o Prata, um povoado que pudese servir de base para as tropas e para o comércio. Foi assim que, em 1737, o brigadeiro José da Silva Paes aportou com alguns soldados e umas poucas famílias de imigrantes açorianos, expulsando os índios do lugar. Era uma base militar que fazia a ligação entre Laguna e Sacramento, na beira do rio da Prata, e logo tornou-se a primeira cidade portuguesa naquelas paragens. É, portanto, um dos municípios mais antigos do Rio Grande do Sul, de origem portuguesa. É bom lembrar que os povos das missões já existiam, mas eram de domínio espanhol.
Assim, criada a vila, Rio Grande passou a comandar a vida do estado, protagonizando grandes batalhas contra os espanhóis e depois instalando a primeira Câmara de Vereadores do Estado, bem como a primeira Câmara de Comércio. A vida do Rio Grande do Sul como uma nova província do reino de Portugal começou por ali.
A estreita ligação da cidade do Rio Grande com a história do estado segue bastante original. Pois ela vira oficialmente um município justamente no ano de 1835, data do começo da histórica luta de libertação dos riograndenses que iria culminar com uma república, a primeira em território português. De vida breve, mas de larga repercussão na história do país. Já nesse tempo, muitos outros povos haviam aportado em Rio Grande, em busca de vida melhor, vindo da Europa e da Ásia, dando outras matizes à imigração açoriana. Desde aí, a vida da cidade só se fortaleceu na relação com o mar, constituindo o segundo porto do país em movimentação de carga e uma refinaria de petróleo, responsável por muita riqueza.
Para os habitantes da “rainha do mar” como é conhecida, o esporte bretão – futebol – chegou no final do século XIX, quando ainda era um ilustre desconhecido no Brasil. Com a formação de uma pequena comunidade de cidadãos imigrados da Grã Bretanha, o futebol logo se fez notar. Era jogado pelos homens, na rua mesmo, em alegres brincadeiras, com bolas apropriadas que chegavam de navio, desde a Inglaterra. Das esquinas, a gurizada espiava a novidade e ensaiva jogadas com bolas de meia. Então, em pouco tempo, o esporte já era bem conhecido na cidade, o que levou a fundação de um clube só para ele em 1900, o Sport Rio Grande. Desde ali, da porta do mar, o futebol se espalhou. Até os anos 60, o clube tinha muita força, sendo depois suplantado pelos times criados na capital.
O esporte como educação
O futebol para os rio-grandinos sempre foi uma festa. E, mais do que ganhar campeonatos, o importante era disseminar a prática pela cidade, para que a garotada pudesse ter a oportunidade de “sacudir o esqueleto” e, quem sabe, até tomar a prática como uma profissão. E foi pensando nisso que o Sport Club Rio grande criou, em 1992, a Fundação Sócio Cultural Esportiva do Rio Grande – FUNSERG, para trabalhar com atividades esportivas e recreativas, que pudessem garantir à crianças e adolescentes um espaço prazeroso de esporte, sem o desespero da competição.
Esse também foi um passo pioneiro, porque trouxe para o mundo do esporte um pensar totalmente inovador, integrando as atividades esportivas à vida social. E foi essa tradição sócio/esportivo/cultural, que vem desde as primeiras peladas de rua até os dias atuais, que deu o foco para uma parceria com a Petrobras, num projeto de construção de um Centro de Referência de Esporte Educacional na cidade de Rio Grande, que tem como objetivo proporcionar práticas esportivas que venham a contribuir pedagogicamente para a formulação de políticas públicas de esporte e lazer para toda a população.
O trabalho, aprovado pelo setor de projetos sociais da Petrobras, atua em seis frentes esportivas: futebol, basquete, vôlei, natação, taekwondo e box. Todos eles são oferecidos gratuitamente e hoje já envolvem mais de 600 crianças e adolescentes da comunidades de Rio Grande e também das cidades vizinhas. 130 professores recebem formação em parceria com o Instituto esporte Educação, cuidam do processo educacional, buscando romper com a esportivização das práticas corporais. A proposta básica é: ensinar as bases técnicas dos esportes, sem perder o vínculo com a alegria e a democratização dos jogos populares.
Os Centros de Referência em Esporte Educacional fazem parte do trabalho social da Petrobras e hoje existem apenas cinco deles em todo o país. Um fica na Bahia, outro no Amazonas, o terceiro no Rio de Janeiro, o quarto em Rio Grande e o quinto em Pernambuco. A cidade acabou envolvida no processo porque há todo um planejamento de investimentos públicos no porto e na indústria naval. A Petrobras mesmo estima injetar, nos próximos anos, investimentos na ordem de 6 bilhões, justamente para alavancar a indústria naval e petroleira. Para os coordenadores do projeto, essa parceria com a Petrobras permite ampliar o acesso e o direito de crianças e adolescentes ao esporte e ao lazer como também a novas práticas culturais, que envolvem a cooperação e a solidariedade. Ou seja, uma outra cultura no âmbito do esporte.
Como é o trabalho
As atividades desenvolvidas pelo CREE Rio Grande não apenas centram o trabalho nas crianças. Elas igualmente se espraiam para a formação de professores, uma vez que é base da proposta ampliar o espectro desse olhar original e inventivo sobre as práticas corporais. Assim, já foram realizados oito encontros de formação de professores em Educação Física, com nove redes municipais envolvidas, potencializando as novas práticas para além da cidade de Rio Grande.
Com o patrocínio da Petrobras, através do programa Esporte & Cidadania, todo esse atendimento pode ser efetuado sem custo para as escolas, para os professores e para as crianças. Além disso, e justamente por conta da força da rede de esporte educacional que vai se formando pela ação dos educadores, sistematicamente poderão ser melhoradas as áreas físicas e os equipamentos de esporte e lazer que andam sucateados, principalmente nas comunidades mais empobrecidas, que acabam proliferando na mesma medida em que outra áreas vão se desenvolvendo. São os educadores, na comunhão com os educandos, que descobrirão a melhor forma de atuar na batalha pelas demandas de áreas qualificadas e bons equipamentos para a prática esportiva e corporal, junto às prefeituras. Assim, a ação educativa no esporte também se transforma em ação política coletiva.
Pois foi pensando nas crianças que vivem nos bolsões de miséria que a Funserg decidiu apostar nessa nova prática com relação ao esporte. Assim, aliada à universidade local, que tem um curso de Educação Física, e às comunidades que reclamam políticas de esporte e lazer, percebeu que era hora de irradiar, desde seus compromissos históricos, uma cultura esportiva que atuasse também no campo da transformação social.
Tanto as melhorias físicas como o trabalho de formação já está à todo vapor. A proposta é chegar ao atendimento de 1.200 crianças só em Rio Grande, mas com a constituição da rede multiplicadora em oito municípios da região (São José do Norte, Canguçu, Arroio Grande, Santa Vitória do Palmar, Pelotas, Pedro Osório, São Lourenço do Sul e Chuí), certamente chegará a quase 10 mil atendimentos. Tudo isso propicia a consolidação de uma poderosa rede de educadores que qualifica a prática desportiva e irradia para todo o Estado a partir do registro dessas práticas e a reflexão sistemática sobre elas.
Nesse processo, o compromisso é por novos aportes teórico-metodológicos balizando o trato da educação esportiva de jovens - crianças e adolescentes - moradores de comunidades em situação de empobrecimento econômico e risco social, incorporando práticas esportivas de cunho educacional, solidário e cooperativo, o que permitirá um olhar alternativo sobre o esporte que, acredita-se, possa se refletir também em todo o processo educacional, seja formal ou não. Juntar esportes clássicos com práticas populares leva o jovem a compreender que aquilo que ele traz como cultura e vivência da rua também tem valor. Assim, a cultura popular também aporta significados ao trabalho sistemático, típico da ciência.
O trabalho é, em si, um grande desafio, mas todos estão seguros de que trabalhada de forma respeitosa, essa parceria entre a técnica e a alegria das ruas, só pode render resultados positivos. O esporte não é apenas uma forma de manter o físico ou disputar competições. Pode ser também espaço de construção de novas práticas que, saídas do movimento corporal, possa se incorporar na vida mesma, na política, na economia, no modo de organizar a existência. Quando abstrações como solidariedade, equidade e cooperação começam a ser vividas na prática, a tendência é uma mudança radical no cotidiano.
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